A saúde integral Flavia Caretta A pessoa, seja qual for o papel que desempenhe, ou qualquer função que represente na sociedade, é titular da responsabilidade de mudança. A pessoa que, envolvendo outras, e partilhando suas ideias e aspirações, contribui para criar uma cultura de participação, de acolhida e de comunhão. Se este método for colocado em prática por vários profissionais, pode-se prever a realização de uma experiência de saúde global da pessoa, nas suas dimensões bio-psico-social e espiritual. Nesta perspectiva, as diversas soluções dos problemas que se deve enfrentar não nascerão apenas de um modelo teórico de referência, mas será a concretização das exigências autênticas de cada um.

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Introdução

O título do Simpósio "Saúde Integral" nos leva a uma reflexão fundamental: ao lado do termo saúde se adiciona o adjetivo integral. É necessário esse esclarecimento? Será porque atualmente o conceito de saúde é muitas vezes equivocado? Por que a saúde poderia ser reduzida a uma parte da pessoa, a saúde de um órgão, ou a um ideal de saúde entendido como uma forma física perfeita, que responda aos padrões estéticos, aos modelos impostos pela sociedade? Ou, ainda, porque poderia se referir à dimensão individual da saúde, esquecendo o aspecto social ou o ambiente?

Olhando para as origens

Um olhar sobre as origens pode nos ajudar: o homem da antiguidade era considerado como pertencente à totalidade da natureza, como um microcosmo cuja estrutura reproduz os elementos que compõem o universo inteiro. A saúde, em particular, era entendida como uma harmonia desses elementos, a doença como desarmonia.
Nesta perspectiva, a cura do corpo, quando essa ocorre, é o resultado de uma cura da alma, obtida através de uma purificação, de uma catarse, mais ou menos longa: o reestabelecimento de uma relação espiritual com o divino faz voltar o equilíbrio, ou seja, a saúde.

O homem e a natureza

Nos tempos antigos, a saúde foi sempre considerada um diálogo entre cultura e natureza, entre o indivíduo e a natureza . A saúde está, também, em relação com as estações do ano e com o desenvolvimento do indivíduo. A abordagem da promoção da saúde deve sempre levar em conta a natureza, porque a saúde da pessoa só pode ser alcançada no contexto do relacionamento humano com a natureza. Este é o sentido cosmológico que a antiguidade confere à saúde.
Na evolução ocorrida ao longo de muitos séculos, mesmo entre tendências muitas vezes contrastantes, no fundo vemos que se está tentando recuperar essa visão. Olhando para os documentos de organizações internacionais responsáveis pela proteção da saúde, observa-se, de fato, um esforço nessa direção. Sem subestimar todas as opiniões contrárias, devemos considerar o empenho de tantos que estão trabalhando em diferentes níveis para tentar transformar os desafios em oportunidades.
É claro que a promoção da saúde não pode se referir somente às contribuições provenientes da ciência, mas deve, necessariamente, considerar o aspecto da relação entre as pessoas e um sistema de valores em um contexto sócio-cultural específico.

A consideração da pessoa

Na época atual, por um lado, argumenta-se que a atenção à saúde passou a limitar-se à parte biofísica, ignorando o interesse pelas outras dimensões da pessoa, favorecida pela extrema especialização e tecnologização no âmbito médico.
Ao lado dessa afirmação - que certamente reflete parte da realidade - está emergindo sempre mais a atenção à pessoa, que vem considerada na globalidade de suas dimensões.

As relações sociais

Os estudos demonstram, por exemplo, que as relações sociais têm um impacto nos efeitos sobre a saúde a curto e longo prazo: tais efeitos surgem na infância e prosseguem ao longo de toda a vida a efeito cascata .
Os relacionamentos, tanto em quantidade como em qualidade têm um impacto positivo sobre a saúde física e mental, sobre estilos de vida saudáveis, sobre o risco de mortalidade. A presença de relações significativas está associada a um aumento de 50% na chance de sobrevida . O efeito protetor sobre a saúde não se limita somente ao aspecto da prevenção, mas também do tratamento: somando às terapias médicas, a proximidade afetiva, a solidariedade, não são apenas uma forma de melhorar a qualidade de vida do paciente, mas são aliados biologicamente ativos do tratamento. Um recurso terapêutico fundamental é, portanto, a rede de pessoas ao redor do paciente.

A dimensão espiritual

Embora a OMS não tenha modificado ainda a definição oficial de saúde, em muitos documentos oficiais encontra-se o termo "espiritual" entre os fatores que podem interagir na promoção da saúde. Por exemplo, em 1971, em um documento da Conferência da Casa Branca sobre o Envelhecimento, é adotado oficialmente o termo "bem-estar espiritual" mostrando ser necessário considerar a espiritualidade entre os indicadores de qualidade de vida.

Deve-se notar que o termo "espiritualidade" pode ser entendido como a necessidade de significado, de propósito, de realização que caracterizam a vida humana, a esperança e a vontade de vida, as convicções, eventualmente a fé em uma crença religiosa. Portanto, a espiritualidade não coincide necessariamente com a religiosidade.
Desde então, a atenção à dimensão espiritual na saúde passou a ser aprofundada, multiplicaram-se as pesquisas demonstrando os efeitos benéficos da espiritualidade e da fé religiosa sobre o estado de saúde , . Sabe-se que já no ano 2000 tinham sido publicados em revistas científicas em torno de 1.200 estudos que tinham como objeto a relação entre espiritualidade e saúde, muitos dos quais relataram uma associação positiva.

Mas se espiritualidade é importante para a saúde do paciente, deveria ser também para aqueles que realizam o tratamento. Com efeito, uma atenção à espiritualidade é cada vez mais reconhecida como parte fundamental de um atendimento de alta qualidade . Desse.modo ele deve fazer parte dos parâmetros vitais , ser constantemente avaliado e considerado um elemento essencial na terapêutica.

Note-se que a própria OMS inseriu a dimensão espiritual no tratamento no documento sobre Cuidados Paliativos e, ainda, no documento publicado por ocasião da Segunda Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, em 2002, cita-se várias vezes a palavra "espiritual".

Ambiente e saúde

A pessoa está inserida em um ambiente físico e a relação com o ambiente é um dos princípios fundamentais do estado de saúde da população. O ser humano é parte integrante dos ecossistemas em que vive: há uma interligação estreita entre a saúde dos ecossistemas e a saúde humana. A década 2011-2020 foi declarada como a Década da Biodiversidade pela ONU: sabemos que o termo biodiversidade refere-se ao conjunto de todos os organismos vivos em suas diversas formas e ecossistemas relacionados a eles.
Há uma correlação significativa entre a propagação de doenças infecciosas e a diminuição da biodiversidade resultantes do desmatamento, mudanças no uso do solo, construção de barragens ou outras alterações na distribuição e disponibilidade de superfícies de água, urbanização descontrolada, poluição da água, uso de pesticidas, uso inadequado de fertilizantes, etc.
A proteção da natureza não deve ser considerada uma tarefa exclusiva de ambientalistas e políticos, mas sem dúvida, uma responsabilidade partilhada entre todos. Os profissionais de saúde têm um papel fundamental para garantir que a extraordinária diversidade da vida em nosso planeta, o seu maior trunfo, permaneça disponível para o benefício das gerações futuras.

Indivíduo e sociedade: indicadores sociais

Olhando a sociedade e não somente o indivíduo, os documentos da OMS enfatizam que o bem-estar dependa talvez, muito mais, de fatores que são normalmente considerados estranhos ou com pouca influência na saúde: a cultura, o nível sócio-econômico (que por sua vez, influenciam os comportamentos e os estilos de vida) e o ambiente, que já foi mencionado acima.
É sabido, há muito tempo, que existe uma ligação direta entre condição econômica e saúde, chamada de gradiente social, especialmente evidenciando as injustiças e desigualdades dramáticas quando se trata de causas evitáveis de doenças, entre os países em desenvolvimento e os países mais ricos.

Mas o que está acontecendo, mesmo nos sistemas de saúde dos países ocidentais, é que "gradientes de saúde" existem dentro de um mesmo país.

Disso recorre que as possíveis soluções devem ser encontradas através de medidas que visem reduzir a lacuna social e promover a solidariedade não somente entre ricos e pobres, mas também entre as gerações, etc.

Como exemplo de medida concreta, alguns políticos noruegueses já haviam enfrentado o problema de como organizar o seu sistema de saúde de forma equitativa e escolheram o valor da fraternidade como diretriz para reorganizar os serviços de saúde. Até agora este é o único estudo encontrado na literatura médica internacional em que usa o termo fraternidade.
A atenção à saúde também tem um impacto social importante com o objetivo de melhorar o estado de saúde da população, especialmente das classes e dos povos menos favorecidos, podendo dar uma contribuição significativa para o avanço e a manutenção da paz social e internacional.

Os sistemas de saúde podem se tornar um instrumento de redistribuição de riqueza e um meio para aumentar o bem-estar econômico das classes e dos povos mais desfavorecidos .
A desigualdade social não é apenas uma negação do valor universal do homem, mas é uma causa significativa, uma das formas de doenças mais importantes que existem hoje a despeito e independentemente das etiologias específicas . Como consequência, a eliminação das desigualdades sociais só pode conduzir à uma melhoria da saúde da população e portanto, à uma redução dos custos com a saúde.

A personalização da assistência

Há sempre a interconexão inseparável entre a dimensão individual e social. A sociedade é formada por indivíduos com características peculiares. Além disso, o tempo de vida leva a uma progressiva e ulterior diferenciação: quando se trata da saúde da pessoa é necessário pensar no entrelaçamento entre a biologia e a biografia dela.
É evidente, então, que o uso de modelos padronizados de atendimento não serve para responder a uma necessidade que se modifica e é influenciado por muitos fatores, não podendo ser fragmentado em modelos simples.

Sabe-se, então, que ao elaborar um plano de assistência, os cuidados personalizados devem ser respeitados como característica fundamental para alcançar a meta de uma cura eficiente.
O ser humano é uma grande obra inacabada: a vida constrói constantes mudanças no biológico, no somático, no psicológico, no relacional, no espiritual, nunca chegando a um ponto final, conclusivo. Na verdade, nem mesmo a morte representa uma conclusão, porque pode desencadear novas perspectivas na esfera ética, espiritual e religiosa.

Recursos organizacionais e papel dos profissionais

Segue-se que a nível organizacional a palavra-chave é “desfragmentação”: qualquer tratamento nunca pode ser fracionado em setores ou em momentos diferentes. Portanto é necessário, em um território, superar a fragmentação da assistência à saúde mediante ações continuadas. O papel fundamental é a rede de serviços de atenção primária, destacando os nós e as inter-relações funcionais em um sistema de gestão e de relacionamentos entre os profissionais com funções claras e projetos que definem as ações assistenciais. Muitas vezes, porém, é necessária a transferência para o atendimento secundário ou terciário.
É fundamental, neste contexto, a consideração do sistema organizacional.
As organizações não podem viver somente como espaço para a técnica, mas, sim como espaço de vida habitado por pessoas (pacientes, profissionais de saúde, diretores, etc.), locais de relacionamentos onde os cuidados são prestados. Locais onde se prioriza a qualidade de vida da pessoa, suas escolhas, seus valores, suas opiniões, o direito à informação, à distinção, à qualidade do atendimento. (Orlando, 2009).
Em vários documentos encontram-se as recomendações que citam sempre os chamados "Ambientes de Suporte à Saúde", ou seja, ambientes que favorecem a saúde e, ainda, especifica que, no contexto sanitário, a ação para criar tais ambientes deve, antes de tudo, observar onde o paciente vive, a sua comunidade, a sua casa, onde trabalha, onde se diverte e relaxa. E não só isso, mas deve conhecer também como a pessoa busca a sua subsistência, as oportunidades de crescimento.
Devemos, portanto, levar em consideração muitas dimensões: "física, social, espiritual, econômica e política." Cada uma dessas dimensões está intrinsecamente ligada entre si, em uma interação dinâmica.

Que saúde queremos?

Como podemos repensar a saúde no momento atual frente a tantos desafios? Um dos eventos mais importantes para a política de saúde internacional, foi realizada em Alma Ata em 1978.
Na Declaração conclusiva , se enfatizou entre outras coisas, a necessidade da comunidade participar - por meio de uma educação adequada - na promoção da saúde envolvendo os agentes sanitários para trabalharem juntos e responderem às necessidades da saúde expressas pela comunidade. Problemas muito atuais ainda hoje e que devem ser considerados entre os objetivos a serem alcançados.

Quais poderiam ser os possíveis caminhos a seguir para atingir tais objetivos?

  1. Na área da saúde, há uma necessidade urgente de uma nova formação clínica, que deve levar em conta a mudança do papel do médico (de “único” protagonista passa a ser um membro de uma equipe), uma avaliação multidimensional na continuidade da assistência.
  2. Atualmente as características dos profissionais de saúde devem satisfazer essencialmente três elementos: a competência clínica, a capacidade de dialogar com outros especialistas e de trabalhar em equipe.
    A "revolução" dos pacientes. A questão-chave é a mudança do papel do paciente: de passivo para protagonista ativo do seu próprio estado de saúde. É claro que a primeira etapa requer uma participação conjunta a começar pelas decisões clínicas. Mas a participação dos pacientes deve ser considerada muito mais do que um modo para melhorar a eficiência nos cuidados da saúde. É necessária uma mudança radical no papel do paciente em nível de organização sanitária e do sistema de saúde. Por exemplo, as associações de pacientes e familiares, que já existem e que estão se multiplicando, chamam a atenção das Instituições de saúde e dos políticos para os seus problemas. No mundo atual, onde a informação médica tornou-se acessível a todos, deve-se tomar consciência de que a competência em matéria de saúde e doença não é mais exclusiva dos agentes sanitários. Os médicos e os pacientes precisam trabalhar em parceria, pois a saúde não vai melhorar enquanto os pacientes não exercerem um papel de liderança na concepção de novas políticas, sistemas e serviços .
  3. Devem ser renovadas também as organizações - além do aspecto estritamente técnico - como espaço físico e simbólico que comporta as interações e gera a atenção pelas pessoas, que confirma os valores compartilhados, dá a possibilidade de pensar, de discutir, de tomar decisões e iniciativas de mudança . Dessa forma, elas podem servir de apoio para as pessoas envolvidas nas políticas de saúde, ajudando a conciliar as decisões urgentes e necessárias visando o futuro .
  4. É claro que os sistemas de saúde estão intimamente ligados ao desenvolvimento econômico, político, educacional, etc. Daí a necessidade de uma relação entre as diversas partes, de um diálogo, de um confronto contínuo que vai ajudar na compreensão de como beneficiar, como harmonizar as diferentes exigências. Mas o diálogo não pode ocorrer entre Instituições, o diálogo deve ocorrer entre as pessoas que ali se encontram e estão empenhadas em encontrar respostas, estratégias de melhoria.
    Um diálogo autêntico deve ser desejado e atuado, pressupõe da parte de cada um o respeito recíproco, compreensão mútua, aceitação de suas próprias competências; é uma partilha de objetivos, uma comunhão de recursos, de conhecimentos científicos e de necessidades.

Conclusão

Concluindo, podemos, então, falar de uma metodologia para o diálogo: metodologia que exige a iniciativa da pessoa, verdadeiro protagonismo do serviço, dos tratamentos, das ações assistenciais, dos projetos econômicos e políticos.

A pessoa, seja qual for o papel que desempenhe, ou qualquer função que represente na sociedade, é titular da responsabilidade de mudança. A pessoa que, envolvendo outras, e partilhando suas ideias e aspirações, contribui para criar uma cultura de participação, de acolhida e de comunhão.

Se este método for colocado em prática por vários profissionais, pode-se prever a realização de uma experiência de saúde global da pessoa, nas suas dimensões bio-psico-social e espiritual. Nesta perspectiva, as diversas soluções dos problemas que se deve enfrentar não nascerão apenas de um modelo teórico de referência, mas será a concretização das exigências autênticas de cada um.

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